Entre 2015 e 2022, houve aumento de 50% nos casos de violência contra lésbicas, no Brasil, de acordo com registros do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sisan). O número subiu de 1.721 para 3.478 no período. As informações são da Agência Diadorim.
Os dados foram levantados em um estudo feito pelas pesquisadoras Camila Rocha Firmino e Kamilla Dantas Matias, com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
O resultado do levantamento foi publicado em livro, em 7 de março. Na pesquisa “Violência contra mulheres lésbicas: perfil dos registros de atendimento no Sistema Nacional de Agravos de Notificação – Sinan (2015-2022)”, foram analisados dados de violências contra lésbicas cometidas por terceiros e autoprovocadas que foram comunicadas aos serviços de saúde no período.
Dentre os principais resultados do estudo estão o crescimento nos registros de violências sexuais contra mulheres lésbicas, o alto índice de tentativas de suicídio entre lésbicas jovens e o maior volume de violências sofridas em locais públicos, como ruas e bares, em relação a violências sofridas por mulheres heterossexuais.
Camila Firmino, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e analista de políticas sociais, explica que os dados do Sinan passaram a incluir informação sobre orientação sexual e identidade de gênero a partir de 2014, por isso o recorte temporal de 2015 a 2022 utilizado na pesquisa.
O primeiro passo do estudo consistiu em focar nos dados relativos a mulheres, o que fornece um universo de informações, já que de 70% a 74% dos registros de violência interpessoal no Sinan, ao longo dos oito anos analisados, têm como vítimas mulheres.
“Entre as lésbicas, houve aumento de 50% nos registros dessas violências de 2015 a 2022. Subiram de 1.721 para 3.478. Ressaltando que são mulheres que chegaram até o serviço de saúde, então provavelmente se tratam de violências graves”, explica Camila.
“Não significa que aumentou ou diminuiu a violência em si, mas que houve aumento de registros. Isso também passa por uma sensibilização dos profissionais de saúde para o preenchimento desses dados. Para enfrentar o problema, a gente precisa compreendê-lo”, observa.
Violência física é mais frequente
O tipo de violência interpessoal com maior frequência de registros tanto para mulheres lésbicas quanto para heterossexuais foi a física. Para as primeiras, a violência física representou 52,7% dos registros, e para as heterossexuais, 51,5%.
Na sequência, aparece a violência psicológica/moral, com 25,5% dos registros para as lésbicas e 28,2% para as heterossexuais. Em terceiro lugar, vem a violência sexual, que correspondeu a 14,8% dos registros contra lésbicas e 11,5% contra heterossexuais.
O estudo destaca o aumento de 6% nos registros, ao longo dos anos, da violência sexual contra mulheres lésbicas, enquanto entre as heterossexuais o crescimento foi de 3%.
“Entre os registros de violência sexual contra as lésbicas, 74% são de casos de estupro corretivo, seguidos de 19,5% de assédio sexual e 2,1% de exploração sexual”, detalha Camila.
Idade das vítimas
Os registros de violência contra mulheres heterossexuais estão mais diluídos entre as faixas etárias, que compreendem intervalos de cinco anos.
Enquanto para as mulheres heterossexuais, no período analisado, 52% dos registros referem-se às faixas etária de 15 a 34 anos (15 a 19, 20 a 24, 25 a 29 e 30 a 34), para as mulheres lésbicas, 51% concentram-se nas faixas etárias de 15 a 29 anos (15 a 19, 20 a 24 e 25 a 29).
Nenhuma faixa etária com intervalo de cinco anos concentra mais que 14% dos registros de violências contra mulheres heterossexuais.
Em relação às lésbicas, a maior frequência de registros de violência encontra-se na faixa etária de 20 a 24 anos, com 19,2% dos registros, seguida pela faixa etária de 25 a 29 anos (com 16,3% dos registros) e pela faixa etária de 15 a 19 anos (14,6% dos registros).
“A idade em que há mais casos de violência contra lésbicas, de 15 até 30 anos, coincide com o período de ‘saída do armário’, em que as mulheres lésbicas enfrentam muita violência. Posteriormente, com maior autonomia, elas podem se desvencilhar da família de origem, enquanto que as mulheres heterossexuais estariam migrando de uma família violenta para outra”, analisa Camila.
Risco em casa e nas ruas
Tanto para mulheres lésbicas quanto para héteros, a residência é o local de maior risco. As lésbicas, porém, estão mais suscetíveis a violências em vias públicas.
“Enquanto entre mulheres heterossexuais esse tipo de violência representa 15% dos registros, entre lésbicas o índice sobe para 21%. Nos bares também há cerca de 2% a mais de violência contra lésbicas”, pontua Camila. “Eu não tinha ideia de que estaríamos mais expostas a essa violência nas ruas. Me parece uma informação relevante, inédita e triste também.”
O meio de agressão mais frequente contra mulheres no período analisado foi a força corporal, representando 53,5% dos registros contra mulheres lésbicas, e 52,9% contra heterossexuais.
Em seguida, foi a ameaça: 18,7% contra lésbicas e 22,1% contra as heterossexuais. Em terceiro lugar, o meio de agressão mais registrado foi por meio de objeto perfurocortante: 8,4% contra as lésbicas e 6,1% contra as heterossexuais.
Suicídio entre jovens
Os dados de violências autoprovocadas chamaram a atenção das pesquisadoras por mostrar um índice muito discrepante entre homens e mulheres. Há quase o dobro de registros com vítimas mulheres em relação a homens. Os registros de violências autoprovocadas incluem autoagressões, tentativas de suicídio e suicídios.
Também há uma evidente diminuição dos registros nos anos de 2020 e 2021, que as pesquisadoras atribuem ao período da pandemia da Covid-19. “A diminuição pode querer dizer que as pessoas deixaram de procurar os serviços de saúde (não que os casos deixaram de ocorrer)”, explica Kamilla Dantas.
De 2015 a 2022, os dados mostram 10% mais tentativas de suicídio de mulheres lésbicas que de mulheres heterossexuais. Lésbicas brancas detiveram o maior percentual de lesão autoprovocada (55,3%), e a idade de 15 a 29 anos concentra a maior parte dos registros de lesão.
Metodologia
Doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Suane Felippe Soares, pesquisadora do lesbocídio no Brasil e uma das pesquisadoras que participaram do estudo, explica que a pesquisa foi realizada por um grupo ainda não institucionalizado.
“Esse trabalho integra um grupo de pesquisa que estamos desenvolvendo, a princípio chamado ‘Lésbicas pesquisando: Lesbocentrar para viver’. Queremos centrar nossa realidade em dados sobre o que as lésbicas enfrentam. Não somos um projeto institucional, embora eu esteja filiada a instituições enquanto pós-doutoranda”, conta. Foram cerca de dois anos de trabalho até o resultado do estudo.
“Quando a gente teve acesso aos microdados era um mundo, inúmeras variáveis. Fizemos uma ‘limpeza’, ajuste de nomenclaturas. Depois fomos entender o que queríamos daquilo”, acrescenta Kamilla.