Uma decisão judicial recente motivada por uma pessoa catarinense fará com que seja emitida uma certidão de nascimento em que não constará ‘feminino’ ou ‘masculino’ no sexo de registro. Brune Bonassi, de 31 anos, nasceu em Concórdia, na região Oeste de Santa Catarina, mas sua vitória veio por meio da Justiça do Ceará, onde mora. A nova certidão de nascimento deve ser emitida nas próximas semanas.
A retificação da certidão de nascimento de Brune Bonassi, que é psicanalista, será feita após a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, no final de maio. A moradora de Mulungu, no interior do Ceará, teve apoio da Defensoria Pública do Ceará.
De forma objetiva, a nova certidão de nascimento de Brune não constará “feminino” ou “masculino”, pois nessa identidade de gênero não se pertence de forma exclusiva a um sexo ou outro.
Pessoas trans e travestis podem alterar nome e gênero diretamente no cartório graças a decisões judiciais relativamente recentes, mas a legislação não conta com a mesma possibilidade para pessoas não-binárias. Diante desse impasse, é preciso acionar a Justiça para retificar documentos e tentar conseguir sua identidade oficializada.
Brune se identifica como pessoa não-binária desde 2015, mas por falta de fundamentação jurídica, teve que manter a situação.
Não-binariedade ou identidade não-binária é um termo para identidades de gênero que não se enquadram no tradicionalmente construído masculino ou feminino, estando portanto fora do binário de gênero.
Em 2018, um provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permitiu a mudança do nome, mas o sexo teve de permanecer o mesmo designado em seu nascimento.
Quatro anos depois, em 2022, Brune acionou a Articulação Brasileira Não-Binárie (Abranb) e ela e um grupo iniciaram o processo junto à Defensoria cearense.
Em primeira instância, o Poder Judiciário do Ceará decidiu, em junho de 2023, não reconhecer a não-binariedade, mas a Defensoria recorreu. A sentença foi proferida pela 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado (TJCE) no dia 22 de maio.
Durante o processo, que durou um ano e meio, a juíza ainda chegou a solicitar de Brune um laudo psicológico, atitude condenada pelo Conselho de Psicologia e por organismos internacionais.
A decisão destaca que “de acordo com o art. 516 do Provimento 149 do CNJ, toda e qualquer pessoa maior de 18 anos e que esteja habilitada à prática de todos os atos da vida civil, poderá requerer a alteração e a averbação do prenome e do gênero. Dessa forma, entendo que não se pode restringir a alteração apenas ao gênero feminino ou masculino, considerando que existem outros gêneros reconhecidos atualmente”.
O defensor público Raimundo Pinto, que atuou na defesa de Brune, comenta sobre o feito histórico: “Essa conquista abre a porta para que os outros recursos sejam julgados e mais pessoas possam ter sua identificação reconhecida judicialmente. Negar esse direito seria ferir o direito à dignidade dessas pessoas que buscam reconhecer os seus direitos e em muitos casos, reconhecer sua própria personalidade.”
“Essa decisão agora amplia e faz com que o direito de todas as pessoas sejam garantidos. Se homens trans, mulheres trans e travestis podem fazer a mudança de nome e gênero, pessoas não binárias também podem. Não existe motivo para se distinguir indivíduos trans binários e não binários. Então, essa decisão representa a autodeclaração de cada pessoa. Porque não é o Estado, nem terceiros, que vão impor identidade a ninguém. A pessoa é o que ela se enxerga e os seus documentos precisam trazer essa realidade, fática e jurídica, de cada uma delas”, pontuou a defensora pública Mariana Lobo.
Os defensores públicos Raimundo Pinto e Mariana Lobo e a defensora de segundo grau Ana Cristina Alencar, atuaram no caso.
Quem é a pessoa não-binária que terá certidão de nascimento sem sexo de registro
Ao portal da Associação Nacional de Defensores Públicos, Brune detalhou mais informações sobre sua história de vida. Brune conta que é psicanalista e diz que a relação com a família sempre foi conflituosa exatamente por questões relacionadas à identidade de gênero e à orientação sexual. E que ser obrigada a escrever o sobrenome lhe causa sofrimento psicológico. O contexto de violências fez nascer uma aversão ao vínculo familiar.
“Quando nasci, fui registrade com o nome de Bruna Camillo Bonassi. A minha família materna sempre foi muito machista e transfóbica. Por conta disso, o meu sobrenome materno me gera gatilho. Me sinto triste, ansiose e tenho náuseas toda vez quando tenho que assinar meu nome inteiro. Tive em minha vida um longo histórico de depressão, crises de ansiedades e pânico por conta dessa relação conflituosa e me afastei da minha família materna assim que pude, com 17 anos. Quando preciso entrar em contato, meu psicológico é severamente afetado”, narra.
“Durante a minha infância, sempre tive disforia com o feminino, com a minha própria imagem e eu não conseguia me identificar nem com o grupo das meninas nem com o grupo dos meninos. Sempre tive o costume de andar com cabelo amarrado, calça bem larga e isso gerava um estranhamento nas pessoas, uma vez que nasci em uma cidade do interior, onde tudo era muito tradicional e questões sobre sexualidade eram vistas com maus olhos. Sempre me diziam pra eu ser mais feminina”, diz.
Foi na adolescência que Brune começou a ter uma visão mais ampla sobre si. “Quando estava no ensino médio, comecei a me questionar e me descobri bissexual. Só que, mesmo assim, continuei a ter disforia, não me sentia bem com a minha imagem e não conseguia entender o que eu precisava fazer pra mudar. Foi durante o mestrado que tive acesso à noção de não-binaridade, conheci pessoas não-bináries e, a partir daí, comecei um processo de hormonização e consegui me ver de forma mais positiva”, comenta.