Quem tem medo de mulheres drags? Chappell Roan e a arte além do homem cis
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Quem tem medo de mulheres drags? Chappell Roan e a arte além do homem cis

Cantora estadunidense Chappell Roan levanta questionamento sobre o que é ser drag e catarinenses comentam sobre a polêmica em torno da arte drag

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O que é ser uma drag queen? Nas últimas semanas essa questão tem sido discutida por alguns internautas. O motivo: a ascensão da nova estrela pop, Chappell Roan, uma mulher lésbica que faz parte do movimento drag queen e canta abertamente sobre suas descobertas sexuais e seus relacionamentos com mulheres.

Quem tem medo de mulheres drags? Chappell Roan e a arte além do homem cis
Capa do álbum “The Rise and Fall of a Midwest Princess”, de 2023 – Instagram/Divulgação/Floripa.LGBT

A discussão se deu num contexto em que a artista alcançou o top 5 das músicas mais ouvidas na Billboard 200 e no Spotify com o single “Good Luck, Babe”. Um marco para as drag queens no meio da música, mas que passava o recorde anterior batido por ninguém mais que Pabllo Vittar – que havia sido a primeira drag queen a alcançar o top 50 no Spotify Global – o que fez muitas pessoas rivalizarem as duas e afirmarem que Chappell Roan não era uma drag queen.

Além do hit, quem é Chappell Roan?

Nascida em Willard, no Missouri, estado bem conservador do Estado Unidos, Kayleigh Rose Amstutz, que dá vida a Chappell Roan é uma artista lésbica, de 26 anos, e que canta músicas pop com uma pegada anos 80 valendo-se de sintetizadores. Ela se inspira em nomes como Kate Bush, Lorde e Lana Del Rey.

Sua carreira musical começou em 2017 com o lançamento do single “Good Hurt”. Desde então, foi lançando algumas músicas e aparecendo em festivais como o Coachella. No entanto, foi só em 2023 que ela lançou seu primeiro álbum, “The Rise and Fall of a Midwest Princess”.

Além de se destacar pela sua sonoridade, Roan também canta abertamente sobre seus relacionamentos com mulheres. É o que vemos no hit do TikTok “Red Wine Supernova”, em que ela canta sobre querer fazer sexo com uma mulher.

A cantora também usa seus shows como forma de celebrar a cultura drag, com as aberturas de suas apresentações sendo realizadas por artistas drags. Foi inclusive em uma dessas apresentação que Chappell Roan se entendeu como uma drag.

Em entrevista ao podcast “Q with Tom Power”, publicada em outubro de 2023, a cantora afirmou, que durante uma apresentação dela em Londres, uma drag abriu o show dela e a fez se reconhecer com uma drag queen:

https://www.tiktok.com/@cbcq/video/7354945375456873734

“Eu estava apenas me montando e minha maquiagem não estava pronta ainda, e eu falei: ‘Eu sou como você, eu preciso fazer minha maquiagem e vestir minhas roupas e meio que me transformar’. E ela disse: ‘Você não está apenas fazendo maquiagem, você é uma drag queen’. Naquele momento algo mudou. E eu realmente assumi isso como uma identidade. E tem sido muito libertador dizer que Chappell Roan é meu projeto drag”.

É drag ou não?

Para Amanda Onishi, que performa a drag queen Lady Arsênica e o King Lord Akira, Chappel Roan é com certeza uma drag, considerando misógino e transfóbico afirmar que apenas homens cis podem fazer isso.

“A Chappell Roan só não seria uma drag, se a gente considerar que drag queen especificamente tem que ser um homem cis se transformando em uma caricatura de uma mulher cis. Só que daí, a gente tem um problema, porque se a gente diz que uma forma de arte não pode ser feito por outros gêneros, além do masculino cis. Isso é extremamente problemático, mas hoje mais do que nunca é excludente”.

Algumas pessoas que questionam o fato de Roan ser uma drag queen e argumentam que a cantora não sofre a mesmas pressões que um homem gay que faz parte do movimento.

Além disso comenta-se que Roan, diferente de outras drags, como Pabllo Vittar, não construiu sua carreira em torno da persona drag dela. Algo que pontua o doutor em comunicação, Cristian Gonzatti, que também escreveu o artigo e responsável pelo artigo “Todos nascemos nus e o resto é drag: performatividade dos corpos construídos em sites de redes sociais” , em um Reels lançado no seu perfil Diversidade Nerd.

No vídeo, Gonzatti diz que inegável que a Chappell Roan também faz arte drag, mas afirma que há diferenças entre o caso da cantora americana e a carreira de Vittar.

“Ser uma persona drag queen é diferente de construir toda a tua carreira como uma persona drag queen. Pablo Vittar faz sucesso, lança músicas e videoclipes, faz aparições midiáticas integralmente com sua persona drag. E a Chappell não. Ela nem depende disso para continuar lançando músicas, performando e fazendo aparições midiáticas”

Indo ao encontro do que diz Christian, o catarinense Igor Lima, que perfoma a drag queen Mara Bens, traz uma consideração sobre Chappell Roan ser uma drag ou não. Isso porque, algumas vezes a cantora já se apresentou sem estar montada.

Ao comentar o fenômeno, Lima afirma que há um desespero das pessoas em rotular o que é drag e o que não é drag e colocar um carimbo. E, por isso, a questão envolvendo Chappell Roan acabou virando um tópico na “bolha” de pessoas que se interessam pela arte.

A polêmica, gerou uma reação exacerbada de ambos os lados na internet. Alguns fãs da Pablo Vittar, por exemplo, passaram a desconsiderar os feitos da Roan dentro da arte drag e da música, como forma de exaltar Vittar:

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Fãs de Pabllo Vittar fazem piada de Chappell Roan ser drag em publicações – X/Divulgação/Floripa.LGBT

Do outro lado não foi diferente, com alguns fãs de Chappell vieram a afirmar que Pabllo era “privilegiado”, por ser um homem cis. Desconsiderando também toda carreira da drag e a perseguição sofrida pela extrema-direita no Brasil, com o qual teve que lutar.

Apesar de todos esses questionamentos, vale pontuar que a arte drag não está restrita a nenhuma orientação sexual ou gênero. No artigo “Drag Queen: Um percurso histórico pela arte dos atores transformistas”, por exemplo, o especialista em artes de cena Igor Iemanjás afirma que “Por mais que a drag queen se apresente, na maioria das situações, em ambientes de cultura gay, a forma artística em si não se correlaciona diretamente como conceito de identidade de gênero ou orientação sexual”.

Ser drag, uma arte livre

“Chappell Roan não é a única drag com vulva a sofrer esses tipos de ataques”, afirma Mystika, pessoa não-binária e artista drag. Segundo elu, Pandora Nox, ganhadora da primeira temporada do reality show “Drag Race Germany”, posta frequentemente conteúdos com mensagens dizendo que ela não é drag queen, por ser mulher. E somente seria drag, se fosse king.

Ao falar sobre o assunto, Mystika também traz um relato pessoal sobre sua descoberta como drag, já que entre 2009 e 2012, elu fazia impersonator (tradução livre: imitador) da Lady Gaga, mas não entendia que aquilo que estava fazendo era drag.

“Até porque muitas mulheres trans que faziam a arte também não eram aceitas. Então, como eu, que ‘nasci rachada’, seria drag? Era um termo muito comum na época, que ilustra muito essa visão binária e genital dentro da arte e também da própria comunidade”.

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Artista Mystika nas suas performances de drag king (à esq.) e queen (à dir.) – Instagram/Divulgação/Floripa.LGBT

De acordo com Mystika, ainda existe muita misoginia e transfobia dentro da comunidade, mas “cada vez mais mulheres e pessoas trans estão ocupando esses espaços, mostrando que a arte drag é para todes, independente do seu gênero e sexualidade”.

Assim como Mystika, Igor Lima, que performa a Mara Bens, tem o entendimento que a arte drag “borra” essas barreiras de gênero. “É uma experiência que transcende o gênero”, afirma.

“Limitante”, é a palavra que ele usa para descrever o ato de amarrar a arte drag a regras de gênero, que para Igor é um linguagem artística provocativa, transformadora e livre.

“Tem drag com peruca, sem peruca, tem drag careca, com barba, sem barba, tem drag de todos os corpos e de todos os tipos. Hoje em dia tem grande figuras, mulheres cis que fazem drag, como Pandora Nox e Victoria Scone. Até homem hétero cis tem”.

Enxergar que para ser drag é necessário ser um homens cis é algo que Amanda Onishi afirma que é “antiquado”, pois mulheres cis, trans e travestis sempre ocuparam e moldaram o espaço da arte drag, mas era algo que não se aceitava e era marginalizado dentro de uma comunidade. “Nós sempre estivemos aqui, nós estamos e nós estaremos amanhã”, conclui.

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Amanda Onishi, como Lady Arsênica – Instagram/Divulgação/Floripa.LGBT

“Precisa de coragem para ser drag”

Respondendo a pergunta do que precisa pra fazer a arte drag, Mystika afirmou que “é preciso ter coragem”, além de estudo e dedicação. Elu conta que uma artista drag precisa possuir muitas habilidades para que sua arte fique cada vez mais profissional. Entre elas: conhecimento de maquiagem, figurino, atuação, performance, luz de palco, cenografia, dança e canto. Além de força de vontade, “pois ainda é uma arte bastante desvalorizada”.

O que Mystika fala sobre as habilidades que precisa pra fazer a arte é o mesmo que Igor complementa, já que para ele é necessário elementos criativos e narrativos para criar essa “entidade” que vai para além do gênero e estruturar sua persona drag. “É uma fricção entre a realidade e a ficção. É algo seu elevado a uma nova potência”.

Por fim, Amanda convida quem tiver vontade a fazer parte da arte drag:

“Você tem que ter duas coisas para fazer arte drag: paixão pela arte drag, que é uma arte fantástica; e você precisa ter muita cara de pau para sair da inércia e tirar esse sonho do papel e começar a se montar, que não é fácil. Se você tiver isso, o mundo é seu, só vem chega chega mais”.

 

* Sob supervisão de Danilo Duarte

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